Acessibilidade: Justiça viabiliza ensino de Libras para que réu surdo pudesse ir à julgamento

Imagine-se em um julgamento, onde você não consegue contar sua versão dos fatos, nem compreender o que está sendo decidido sobre o seu destino. Esta cena apavorante poderia ter ocorrido nesta terça-feira (10.08), durante uma sessão de julgamento do tribunal do Júri, na cidade de Arenápolis, Mato Grosso. Mas, graças à sensibilidade de um magistrado e o trabalho conjunto entre poderes, foi possível oferecer a um réu surdo, mudo e analfabeto em Libras e em Português, o direito de se defender de forma justa e de acompanhar o seu próprio julgamento.

O desafio - O juiz da Vara Única da Comarca de Arenápolis, Dr. Diego Hartmann, contou que a iniciativa de buscar recursos para auxiliar o réu em suas necessidades especiais surgiu desde a primeira fase do julgamento.

"Quando fiz a audiência de instrução ordinária do acusado, percebi que a comunicação com ele era muito rudimentar, pois ele só gesticulava. Quando tomei conhecimento que ele era surdo, analfabeto e iletrado em libras, pensei: como fazer um interrogatório por videoconferência de um cidadão com estas características? Foi aí que descobrimos que havia um familiar que poderia nos auxiliar. Mesmo com esta ajuda, a comunicação continuou muito precária, mas conseguimos avançar. No entanto, quando foi decidido que o caso ia ser levado ao plenário, surgiu um novo problema: como fazer este cidadão ser julgado e ouvido pelos jurados? Nesta ocasião, o familiar não poderia participar da tradução, pois era parte interessada no processo. O que fazer então?”, perguntou-se.

O apoio - Foi aí que o juiz se recordou da vasta experiência em tribunais do júri da desembargadora do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT), Maria Erotides Kneip, e procurou se orientar com ela. "Além de me orientar, a desembargadora Maria Erotides me aconselhou a recorrer à Comissão Permanente de Acessibilidade e Inclusão do TJMT, coordenada pela desembargadora Nilza Maria Pôssas de Carvalho. A comissão intermediou nosso contato com a Secretaria Estadual de Assistência Social (Setasc-MT), que disponibilizou um professor e intérprete da Língua Brasileira de Sinais para ensinar o réu", relatou o juiz.

As dificuldades, entretanto, não pararam por aí. Como o acusado estava em prisão preventiva na cidade de Arenápolis, ainda foi preciso entrar em contato com a Secretaria Estadual de Segurança Pública (Sesp-MT), solicitando a transferência dele para Cuiabá.

Sede de saber - "Como a data do julgamento estava muito próxima, foi preciso trazer o réu para Cuiabá. Foram 30 dias direto dentro do Centro de Ressocialização de Cuiabá (CRC), acompanhando ele de manhã e à tarde, para que ele conseguisse memorizar os sinais em Libras. Foi uma missão extremamente desafiadora ensinar libras para uma pessoa não alfabetizada em tão pouco tempo. E hoje, após o julgamento, posso dizer que a missão foi cumprida. Estou muito contente em ver a evolução dele e ver que ele pôde ter seus direitos garantidos. Vi que o acusado tem sede de aprender e esta oportunidade, com certeza, vai trazer uma nova chance para ele, inclusive no mercado de trabalho”, relatou Idevaldo do Carmo Pereira, professor e intérprete de Libras da Setasc há 16 anos.

Quem também se surpreendeu com a evolução rápida do aprendizado do réu foi o juiz. "Posso dizer que ele apresentou uma evolução absurda. Até o semblante dele mudou completamente. Parecia entender o que estava se passando. Durante todo o júri, ele não tirou os olhos do intérprete. Geralmente o réu olha para vários lugares diferentes, mas ele não. Ele tinha sede de saber o que estava acontecendo no julgamento dele. E se não tivesse havido o treinamento, não adiantaria o intérprete, pois ele não saberia identificar os sinais e ficaria completamente perdido. Nada mais justo e correto do que dar a este réu condições de acompanhar de uma maneira efetiva todos os passos do seu julgamento", afirmou Dr. Diego.

Ampla defesa - Para o defensor público do réu, Dr. Marcus Vinícius Esbalqueiro, ao viabilizar a alfabetização do acusado e o acompanhamento do intérprete de Libras durante o júri, a Justiça garantiu não apenas acessibilidade, mas também o direito constitucional à ampla defesa do réu.

"É a primeira vez que participo de um julgamento todo traduzido em Libras e posso garantir que a presença do intérprete foi essencial para que o julgamento ocorresse de forma justa. Não teria como o réu se defender sem ter o conhecimento básico em libras e sem entender o que as pessoas falavam. O réu só estudou até a terceira e, por isso, nas fases preliminares foi quase impossível compreendê-lo. Mas, devido ao pedido do Dr. Diego, deu tempo para ele se aperfeiçoar para se comunicar no julgamento, o que garantiu a ampla defesa para ele”, assegurou o defensor.

É importante destacar que todo esse procedimento foi feito durante a pandemia e durou cerca de 1 ano.

Trabalho em rede - Assim como expôs o defensor, possivelmente este foi o primeiro julgamento do tribunal do júri inteiramente traduzido em Libras, em Mato Grosso, até onde se tem notícia. E, segundo Dr. Diego, este feito foi resultado de um trabalho realizado em conjunto.

"Gostaria de agradecer a todos os envolvidos, especialmente às desembargadoras Maria Erotides e Nilza Maria, que nos ajudaram com suas capilaridades junto ao Estado; às Secretarias Estaduais de Assistência Social e Segurança Pública, pelo apoio irrestrito; e ao professor Idevaldo, que se dedicou integralmente ao ensino do réu e não mediu esforços para comparecer ao julgamento em Arenápolis. Isso nos mostra que quando todos se unem para fazer o bem, o bem acontece”, disse o magistrado ao garantir que o judiciário estadual é sensível a estas situações e tem feito o possível e o impossível para garantir a aplicação de todos os direitos constitucionais.

Justiça acessível - Já para a coordenadora da Comissão Permanente de Acessibilidade e Inclusão do TJMT, desembargadora Nilza Maria Pôssas de Carvalho, este caso exemplificou bem a preocupação da Justiça Mato-grossense em se tornar cada vez mais acessível e inclusiva.

" Além de oferecer espaço no mercado de trabalho para surdos e portadores de necessidades especiais dentro do Tribunal, estamos promovendo cursos de Libras on-line em todo o Estado, para que os servidores possam prestar o atendimento adequado a quem precisa. É importante que todos saibam que estamos de portas abertas para auxiliar no que for preciso para tornar a Justiça cada vez mais inclusiva”, destacou a desembargadora.

Pena - Ao fim, após aproximadamente 8 horas de julgamento, o júri decidiu que o réu é culpado, condenando-o a 6 anos e 17 dias, em regime semiaberto, por homicídio simples.

"Com certeza, o resultado foi justo e pautado no que os jurados entenderam da versão dele. Mas, para além do resultado, é importante que todos saibam que no Estado de Mato Grosso conseguimos proporcionar um julgamento inclusivo e acessível para os cidadãos que buscam a Justiça"” finalizou o juiz.

Fonte: Mariana Vianna - Coordenadoria de Comunicação da Presidência do TJMT